Minhas neblinas e tempestades em tufão/ Aqui/ cai granizo/ cai sereno/ molha a (se) mente/ nasce a brisa/ ora faz sol/ ora chuva torrente/ impalpável nuv-em-oção.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Problema e divisão

   Lino não enxergava muito bem. Desde criança era incapaz de observar detalhes miúdos, especialmente à distancia maior que dois braços. Na escola nunca copiou uma palavra do quadro negro e estava na primeira fileira apenas por recomendação da mãe. Segundo ela, apenas lá ficam os melhores alunos; o fundão é coisa de delinquente. Tudo que ouvia passava para o caderno à tinta, cujo cheiro era sentido com perfeição a todo instante. Já havia até se acostumado com as dores que a postura arqueada causava e quanto mais suportava, mais sua concentração seguia a todo vapor. Seu passatempo predileto era ficar observando seu umbigo. Chegava a passar horas sentado olhando para aquele vestígio físico do laço que tinha com sua mãe, numa hipnose inclassificável.
   Assim cresceu preservando sua miopia, junto com seu jeito humilde, gentil, sempre disposto a qualquer favor que lhe pedissem, seja ele bom ou ruim. Mas sua dificuldade de compreender os acontecimentos mais longínquos o limitava diante das pessoas e sua credibilidade se esfarelava. Sua esposa sempre passava a tarde fora de casa. Quando ele chegava mais cedo do serviço e não a encontrava, ligava para ela e ouvia as mais esparvalhadas desculpas. Por mais incondicional que seu amor fosse, nunca se enfureceu. Certamente, falta de amor é que não era.
   Exatamente num desses dias, que certamente usaria seu telefone pra resolver problema algum, passava pela rua mais cedo que de costume e ouviu uma voz familiar sair de uma janela qualquer. Correu e viu, logo abaixo, o rosto de sua mulher ao lado de um homem também qualquer, envoltos num lençol familiar. Já havia sentido falta desse pedação de pano na sua casa há tempos. Dissera a si próprio, inúmeras vezes, que acharia esse presente de casamento dado pela sua falecida mãe, mas dois dias depois o plano esmorecia e sumia como pedra lançada na água escura do poço. O que importava agora não era mais o lençol, mas por que Lino não pudera prever tudo isso.????.Ele era incapaz de fazer planos a longa data, e muito mais inútil com previsões. Não andava de bicicleta nem carro pois nunca via a batida antes dela ocorrer. Sempre ouvia o barulho e por fim sofria o choque.
   Lá estava a moça que prometeu amá-lo toda a vida, o cara qualquer e ele, o bufa-lino, um panaca que observava estaticamente os dois. Lá seu amor se quebrou inteiro. Lá, súbito, começou a remoer toda os atos da sua vida, toda sua boa índole, sua amabilidade e favores que prestou aos outros. Lá, algo mudou.
Foi nessa mesma hora que o bufa-lino, o panaca, virou uma fera: pulou a janela, mordeu o pescoço do auxiliar de traição e derramou sangue pra todos os lados. Suas garras afiadas deixaram cicatrizes incuráveis no rosto da safada. Depois de despular a janela, nunca mais foi visto na cidade.
   Alguns meses depois desse trágico e necessário episódio, soam rumores que um homem, fisicamente idêntico ao assassino, anda perambulando na cidade ao lado. Especula-se que é ele, sim, é ele. Agora, finalmente, usa óculos, mas óculos de sol, capaz de amedrontar e esconder suas intenções de todos. Sobrepoem seus olhos azuis, nunca vistos antes já que suas pálpebras estavam sempre relaxadas pra facilitar a visão. Sabe-se que há pouco fez uma cirurgia no olho é é capaz de enxergar literalmente tudo. Se identifica sem receio, como antes tinha, por seu nome completo: Cristalino.

Um comentário:

  1. Genial!!! Os impactos da vida transformam míopes em hipermetropes. "Não pressiones demais o covarde que ele vira valente"; "No fundo sabemos que o outro lado de todo medo é a liberdade" (Marylin Ferguson)

    ResponderExcluir